Depoimentos

Depoimento de Regina Maria Da Cunha Bustamante

Data Hora Inser玢o: 21/08/2013 - 12:38:34

Título:
Mestre Ciro e o Laborat贸rio de Hist贸ria Antiga (LHIA) da UFRJ: reconhecimento e gratid茫o

Descrição:

Adapta莽茫o do "Editorial" do n煤mero 1 do volume 19 da revista Pho卯nix (ISSN 1413-5787), peri贸dico impresso publicado semestralmente pelo Laborat贸rio de Hist贸ria de Antiga (LHIA) da UFRJ.

Depoimento:

Em 2007, quando o Laboratório de História Antiga (LHIA) da UFRJ completava 15 anos de existência legal, convidamos o Professor Ciro Flamarion Santana Cardoso para escrever o Editorial da Phoînix. Na ocasião, ele nos brindou com um testemunho sobre o LHIA, que muito nos honra. Em 29 de junho de 2013, perdemos nosso estimado Professor Ciro. Impactados pela dor desta ausência, o Editorial da Phoînix 2013-1, que abordaria a “Vicennalia” [i] do LHIA, retribuiu o testemunho do mestre e amigo, deixando registrada a sua presença sempre constante, benéfica e generosa nos vinte anos de existência do Laboratório. Se o LHIA tem as Professoras Neyde Theml e Norma Musco Mendes como suas fundadoras, o Professor Ciro foi, sem dúvida, o seu padrinho, como fizemos questão de expressar publicamente na apresentação do LHIA como participante de uma mesa sobre as experiências de grupos de pesquisa em Antiguidade no Brasil durante o “I Colóquio de História Antiga”, organizado pelo Laboratório de Estudos Egiptológicos [ii] da UFF, o mais novo e bem-vindo grupo desta natureza no Rio de Janeiro.

Mesmo antes da existência legal do LHIA, o Professor Ciro apoiava e participava das atividades desenvolvidas pelo então Setor de História Antiga da UFRJ. Assim, em 1990, colaborou no curso de extensão “Antigo Egito: Arqueologia e História” e de outros mais que se seguiram [iii]. A partir de 1991, era conferencista frequente do nosso tradicional “Ciclo de Debates em História Antiga”, evento anual que abre espaço para apresentação das pesquisas de estudiosos (graduandos, pós-graduandos e docentes universitários) em Antiguidade no Brasil, visando sua publicização e fomentar o debate acadêmico entre seus participantes. Sempre disponível, suas conferências conseguiam conciliar rigor acadêmico e inteligibilidade para um público assistente bastante heterogêneo, que era atraído às suas apresentações. Preocupava-se em trazer cópias da sua conferência para serem distribuídas ou disponibilizava o texto para reprodução. Respondia, de forma didática, clara e atenta, a qualquer tipo de questionamento, mesmo quando fugia ao seu tema proposto ou seguia por uma linha “mais esotérica”, que se afastava radicalmente da sua abordagem racional. Nestes vinte e dois anos de realização do Ciclo [iv], o Professor Ciro apenas não participou em dois momentos. Em 2005 e 2006, quando o problema de saúde começava a afetá-lo, e nós, preocupados com seu estado e visando poupá-lo do esforço, abrimos mão de convidá-lo, mesmo cientes de que seria uma grande perda para o evento. Entretanto, com sua melhora, voltamos a convidá-lo e ele, então, manifestou seu estranhamento por não termos feito antes. Mais recentemente, em 2012, estando já com a saúde bem debilitada, até o último momento era sua intenção estar presente, apesar da nossa insistência em garantir que era plenamente justificável sua ausência. Infelizmente, não foi possível tê-lo no evento.

Não obstante ter se aposentado na UFF ao completar 70 anos em 2012 [v], traçara planos de continuar atuando profissionalmente. Buscava superar os limites advindos da sua condição de saúde. Assim, em fins de novembro de 2012, nos recebia no “I Colóquio de História Antiga”, como parte das atividades do recém formalizado Laboratório de Estudos Egiptológicos. Este grupo, sob a égide do Professor Ciro, reúne jovens pesquisadores, que foram seus orientandos. Esta foi mais uma característica ímpar da sua ação profissional: formador de pesquisadores em Antiguidade, dentre eles, todos os membros do LHIA, seja como orientador de pós-graduação [vi] ou como arguidor em suas bancas [vii] e, mais tarde, colaborando nas bancas dos nossos próprios orientandos. Nunca impôs sua posição historiográfica; apenas nos exigia coerência nas nossas próprias opções, questionando-nos quando se fazia necessário, ajudando-nos com nossas dúvidas e nos fornecendo indicações preciosas, tudo para desenvolvermos a bom término nossas pesquisas. Suas considerações eram resultantes de uma leitura atenta dos autores, que selecionáramos, e da avaliação da pertinência da nossa abordagem.

Num tempo em que a aquisição de livros por internet não era tão comum, dispunha-se a comprá-los para seus orientandos nas suas viagens ao exterior, escolhendo os mais adequados para suas pesquisas, trazendo-os na sua bagagem e tendo o cuidado de prestar contas das compras efetuadas. Generosamente, colocava sua vastíssima e erudita biblioteca à disposição dos seus orientandos. Sua pasta parecia uma “cornucópia de saber”, pois estava sempre carregada de livros (a serem emprestados e, zelosamente, devolvidos), razão pela qual tínhamos o costume de presenteá-lo com uma pasta de couro no seu aniversário, pois estávamos cônscios de que éramos, em parte, “responsáveis” pelo seu desgaste.

Na própria revista Phoînix, a presença do Professor Ciro foi uma constante. Publicada anualmente entre 1995 e 2008 e semestralmente desde 2009, nos seus 22 números, há 15 textos de sua autoria, abordando Egito, Grécia e Roma [viii]. Tendo produção relevante em Historiografia [ix] e História do Brasil [x] e da América [xi], também se debruçou sobre a História Antiga [xii]. Na epígrafe do livro em sua homenagem, ele se definiu bem: “Não sou monotemático!” (ARAÚJO e LIMA, 2012, p.5). Sua atuação na Área de História Antiga constituiu um enorme ganho, pois reforçava que era possível e se devia desenvolver pesquisa em Antiguidade no Brasil. Assim, contribuiu para romper a percepção, que então pairava (e, infelizmente, em alguns momentos, ainda ressurge), de que “no Brasil, acredita-se que o primeiro homem foi Adão e o segundo, Cabral”, frase síntese da Professora Neyde Theml, que teve a ideia e configurou o LHIA, quando da sua criação há vinte anos atrás. O próprio Professor Ciro, no referido Editorial da revista Phoînix em 2007, indagava: “Por que estranha razão se deveria descartar milênios de interessantíssimas experiências humanas?” (CARDOSO, 2007, p.10)

O apoio e a contribuição do Professor Ciro nas múltiplas atividades do Laboratório foram fundamentais para concretizarmos as nossas metas: produzir conhecimento em História Antiga Clássica, dialogar com os pesquisadores da área das Ciências Humanas e difundir o estudo da Antiguidade Clássica. Gostaríamos de colaborar para eternizar a memória do Professor Ciro Flamarion Cardoso, que enfrentou – e soube muito bem superar – o desafio de trabalhar com “milênios de interessantíssimas experiências humanas”.

Grato por tudo, Mestre Ciro!

Laboratório de História Antiga (LHIA) / UFRJ

 

Referências bibliográficas

ARAÚJO, S. R. de; LIMA, A. C. C. (Org.). Um combatente pela História: Professor Ciro Flamarion Cardoso. Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 2012.

CARDOSO, C. F. S. Editorial. Phoînix, Rio de Janeiro, v. 13, 2007, p.9-11.

GAFFIOT, F. Dictionnaire latin français. 52 ed. Paris: Hachette, 1998.

 

Notas

[i] Vicennalia é o termo latino que designava a “festa celebrada após 20 anos de reinado de um imperador” (GAFFIOT, 1998, p. 1671).

[ii] Antigo GEEMaat, criado em 2009 como parte do Centro de Estudos Interdisciplinares da Antiguidade (CEIA) da UFF e que iniciou sua jornada independente em 2011 ao ser introduzido no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq. Para maiores detalhes, ver seu site em: http://www.egitolab.com/.

[iii] Desde 1987, o então Setor de História Antiga e atual LHIA já ofereceu 27 cursos de extensão de 20h, convidando pesquisadores estrangeiros e nacionais para desenvolver temáticas em História Antiga. Aqui, apenas elencamos os eventos em que houve participação do Professor Ciro: “Antigo Egito: Arqueologia e História” (1990; Ciro Flamarion S. Cardoso, Maria Christina de Caldas F. Rocha, Cláudio P. de Mello e Margaret M. Bakos); “Imagem e História: estudos de iconografia e interpretação” (1998: Ulpiano B. de Meneses, Haiganuch. Sarian, Ciro Flamarion S. Cardoso, Neyde Theml e André L. Chevitarese); “História e trabalho” (1999; Francisco Carlos T. da Silva, Marta M. de Andrade, Neyde Theml, André L. Chevitarese, Fábio de S. Lessa, Maria Manuela R. S. e Silva, Regina Maria da C. Bustamante, Maria da Graça F. Schalcher, Norma M. Mendes, Ciro Flamarion S. Cardoso, José Carlos Monteiro e Victor Hugo Klagsbrun); “Sociedade e religião na Antiguidade Oriental” (1999; Ciro Flamarion S. Cardoso, Cláudio P. de Mello, Carlos Alberto da Fonseca, Edgard Leite F. Neto, Leonardo Chevitarese, André L. Chevitarese, Luis Eduardo Lobianco, Carlos Augusto R. Machado e João Pedro de S. L. Caetano); “O campesinato na História” (2000; Ciro Flamarion S. Cardoso, Regina Maria da C. Bustamante, Maria Paula Nascimento, Carlos Eduardo R. de Mendonça, Neyde Theml, Norma M. Mendes, José Murilo de Carvalho, Ricardo Luís S. da Costa, Gilberto d’Agostino, André L. Chevitarese, Paula F. Argôlo, Leonilde S. de Medeiros, Maria Yedda Linhares, José Francisco de Moura, Gabriele Cornelli, Regina Novaes, João Pedro Stédile, Flávio da S. Gomes, Carlos Augusto R. Machado e D. Tomás Balduíno); “Violência na História” (2001; Ciro Flamarion Cardoso, Rachel Soihet, Norma Musco Mendes, Regina Maria da C. Bustamante); “Jesus Histórico: os olhares da ciência sobre o início do cristianismo” (2003; Gabriele Cornelli, Ciro Flamarion Santana Cardoso, Lauri Emílio Wirth, Marga Stroher, Norma M. Mendes, José Adriano Filho, Regina Maria da C. Bustamante, Nancy Cardoso Pereira, Paulo Roberto Garcia, Pedro Paulo A. Funari, Rívia Silveira Fonseca, Luigi Schiavo, André L. Chevitarese, Paulo Augusto de Souza Nogueira e Manuel Rolph de V. Cabeceiras).

[iv] Desde 1991, o LHIA seleciona uma temática para seu Ciclo de Debates em História Antiga. Assim, já realizamos eventos com os seguintes temas: “A mulher na Antiguidade” (1991), “O homem e a natureza” (1992), “Pensar as diferenças: História e Ciências Sociais” (1993), IV Ciclo de debates em História Antiga associado ao VI Encontro Nacional da SBEC (1994), “Práticas Políticas na Antiguidade” (1995), “A experiência do cotidiano na Antiguidade” (1996) e “História Antiga: novas abordagens interdisciplinares” (1997), “Identidade e Alteridade no Mundo Antigo”, “Espetáculos e Festas no Mundo Antigo” (1999), “Por mares nunca d’antes navegados” (2000), “Gênero & Sexualidade (2001), “Olhares do Corpo (2002), “Linguagens e Formas de Comunicação” (2003), “Monumento, Visão e Memória” (2004), “Memória e Festa” (2005) juntamente com VI Congresso da SBEC, “Escritos e Imagens na Antiguidade” (2006), “Práticas Rituais e Religiosidade” (2007). “Dialogando com Clio – 15 anos do LHIA/UFRJ” (2008), “Encontros & Enfrentamentos” (2009), “Unidade & Diversidade” (2010), “Tempo & Espaço” (2011) e “História e Narrativas” (2012). Para 2013, o XXIII Ciclo de Debates em História Antiga, que ocorrerá entre 23 e 27 de setembro, terá como temática “Política e Comunidade”.

[v] Por ocasião da sua aposentadoria, foi lançado um livro em sua homenagem: ARAÚJO, S. R. de; LIMA, A. C. C. (Org.). Um combatente pela História: Professor Ciro Flamarion Cardoso. Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 2012.

[vi] Orientador de Mestrado de André Leonardo Chevitarese (Os limites da democracia ateniense, 1989). Orientador de doutorado de Neyde Theml (A realeza dos macedônios (VIII-VII século a.C.): uma história do outro, 1993), Maria Christina de Caldas Freire Rocha (Discurso mítico e construção histórica: o mito de Édipo e a realeza tebana, na Idade do Bronze, 1995), Norma Musco Mendes (Sistema político do Império Romano do Ocidente: um modelo de colapso de sociedade complexa, 1996) e Regina Maria da Cunha Bustamante (África do Norte e Império Romano: processo de integração. Estudo de casos: Hippo Regius e Thamugadi, 1998).

[vii] Participante das bancas de pós-graduação de Fábio de Souza Lessa (Mestrado em 1996: Mélissa do gineceu à agorá; e Doutorado em 2001: Mélissa tecendo redes sociais entre os atenienses, séculos V e IV a.C.) e Marta Mega de Andrade (Mestrado em 1994: A cidade das mulheres: alteridade do feminino e cidadania ateniense; e Doutorado em 2000: A “vida comum”: espaço, cotidiano e representações urbanas na Atenas Clássica).

[viii] 1995 (v. 1, p.39-52): Nossos contemporâneos e o amor dos antigos; 1996 (v. 2, p.71-82): Considerações Funcionais acerca das cidades egípcias do Reino Novo (XVIII-XX Dinastias); 1997 (v. 3, p.81-95): Utopias helenístico-romanas; 1998 (v. 4, p.69-88): Sociedade, crise política e discurso histórico-literário na Roma Antiga; 1999 (v. 5, p.99-120): Tinham os antigos uma literatura?; 2000 (v. 6, p.106-135): O Relatório de Unamon; 2001 (v. 7, p.115-141): De Amarna aos Ramsés; 2002 (v. 8, p.75-94): A etnicidade grega: uma visão a partir de Xenofonte; 2003 (v. 9, p. 33-56): Uma casa e uma família no Antigo Egito; 2005 (v. 11, p. 65-97): O amor nos romances gregos de época romana; 2007 (v. 13, p.9-11): Editorial; 2008 (v. 14, p.96-129): As comunidades aldeãs no Antigo Egito; 2010 (v. 16, n. 1, p.11-31): Deslocamento e alteridade: a associação da distância e da viagem como o estranho e o maravilhoso entre os antigos egípcios; 2011 (v. 17, n. 1, p.15-36): Existiu uma “economia romana”?; e 2012 (v. 18, n. 1, p.12-26): Os festivais como encenação da sociedade.

[ix] A título de exemplificação, alguns livros, publicados no Brasil, de sua autoria ou que organizou: Métodos da História; introdução aos problemas, métodos e técnicas da história demográfica, econômica e social em 1979 com coautoria de Héctor Pérez Brignoli; Uma introdução a História em 1981; Ensaios Racionalistas: Filosofia, Ciências Naturais e História em 1988; Narrativa, sentido e história em 1997; Representações: contribuição a um debate transdisciplinar em 2000 com coautoria de Jurandir Malerba; Domínios da História; ensaios de teoria e metodologia em 1997 com coorganização de Ronaldo Vainfas; Um historiador fala de teoria e metodologia: ensaios em 2005; Novos domínios da História em 2012, também coorganizado com Ronaldo Vainfas; Semiótica do espetáculo; um método para a História em 2013 com coorganização de Cláudia Beltrão da Rosa.

[x] A título de exemplificação, alguns livros, em português, de sua autoria ou que organizou: Agricultura, escravidão e capitalismo em 1979; organizou Escravidão e abolição no Brasil: novas perspectivas em 1988.

[xi] A título de exemplificação, alguns livros, em português, de sua autoria ou que organizou: América pré-colombiana em 1981; A Afro-América: a escravidão no Novo Mundo em 1982; História econômica da América Latina; sistemas agrários e história colonial, economias de exportação e desenvolvimento capitalista em 1984 com coautoria de Héctor Pérez Brignoli; O trabalho na América Latina Colonial em 1985; Escravo ou camponês? O proto-campesinato negro nas Américas em 1987.

[xii] Foi aprovado como Professor Titular de História Antiga e Medieval pela UFRJ em 1987 e Titular de História Antiga pela UFF em 1993, tendo optado por esta última, onde já tinha vínculo como docente universitário.