Depoimentos

Depoimento de Alexandre De Paiva Rio Camargo

Data Hora Inserção: 21/08/2013 - 00:06:16

Título:
Uma vida para muitas vidas

Descrição:

(Texto circulado em redes sociais na semana seguinte ao falecimento do prof. Ciro).

Depoimento:

O homem que perdemos no último sábado bem que não gostava. Mas como não render homenagem a quem marcou profundamente a vida de tantos milhares de leitores, alunos, admiradores e amigos? Ciro Flamarion Cardoso foi absoluto em quase tudo o que fez. O vigor de seu pensamento e a amplitude de seus 40 livros e quase 100 artigos articularam fronteiras hoje fechadas por uma história pulverizada.

Com seus escritos, aulas e orientações, Ciro foi, ao lado de Maria Yedda Linhares, o principal responsável pela criação e consolidação da pós-graduação em história no Rio de Janeiro e em boa parte do país, o que representou a profissionalização de um ofício antes dominado por amadores. Fundou áreas que praticamente não existiam no Brasil, como a História Antiga em geral e a Egiptologia em particular. Foi o primeiro a clamar por uma história mais autonomista da colonização, que desse conta do papel das dinâmicas internas na conformação das estruturas, e a defender a perspectiva de estudos comparados, sobretudo entre o Brasil e o restante da América Latina, quando a historiografia dos anos 1970 e 80 mal sabia o que era isso. 

Foi pelas mãos de Ciro que temas hoje conhecidos como "Antigo Regime nos trópicos", "resistência escrava", entre outros, foram esboçados há mais de 30 anos atrás. Na história antiga, Ciro era mais helenista e latinista que a maioria dos classicistas especializados, pois seu conhecimento e apreço pela História total o impedia de se ater à árvore quando se tratava de ver a floresta. Mesmo sendo um dos grandes nos estudos clássicos, contando com uma das melhores bibliotecas neste domínio, preferiu fazer aí incursões mais pontuais, para não sacrificar seu grande projeto: organizar a área de egiptologia no país, sua paixão desde garoto, aquela em que veio a se tornar uma referência mundial. Se a UFF era a única instituição brasileira a oferecer habilitação na área era porque Ciro estava lá. Se havia formação em escrita hieroglífica no país, é porque Ciro oferecia cursos de língua egípcia para seus orientandos. A raridade e a importância deste fato podem ser medidas por uma lembrança pessoal: durante meu estágio doutoral em Montreal no ano passado, a universidade que me abrigava se gabava de se tornar a segunda no país a oferecer um curso semelhante. 

Sobre metodologia, escreveu um famoso tratado inspirado na história econômica, mas sua contribuição também deve ser lembrada por seus incontáveis cursos sobre a pesquisa iconográfica, paleográfica e arqueológica na UFF e fora dela. Seu manual e seus muitos textos sobre análise semiótica do discurso foram intensamente lidos e apropriados por legiões de pós-graduandos na área de humanidades em geral. Não seria arriscado dizer que continua a ser a referência mais importante na aplicação da semiologia entre nós. 

Foi na área de teoria que Ciro pode exercitar seu extremo talento para a polêmica. Bateu forte muitas vezes nos modismos de ocasião, que entendia virem especialmente da Nova História Cultural, praticada pela terceira geração dos Annales, e dos que insistiram em reduzir a história a um simples gênero narrativo, como Hayden White e Dominick La Capra. Marxista dinâmico e pluralista que era, nunca parou de se renovar, atacando por várias vezes a ortodoxia do partido e da academia, a ponto de admitir, nos últimos anos, que a explicação dialética, embora fecunda, havia falhado e já não servia mais. Sua devoção irresoluta à denúncia da dominação e ao projeto de emancipação deram o tom do marxismo fino de sua escrita até o ponto final.

Crítico da transdisciplinaridade, que reputava mais uma ilusão do pós-modernismo, Ciro foi o mais interdisciplinar dos historiadores. Seu repertório que ia da filosofia à teoria social, da antropologia à linguística, da demografia à epistemologia, foi fundamental para dar concisão teórica e unidade de sentido ao mundo fragmentado dos historiadores, acenando-lhes com diferentes entradas para a construção do objeto. Esta era a sua principal arma contra as seduções do culturalismo. Seus livros e ensinamentos se empenharam em mostrar porque nem tudo é história, oferecendo aos seus leitores e alunos o suporte para que desenvolvessem sua própria imaginação histórica, com a consciência, hoje tão em falta na academia, das implicações políticas e ideológicas de suas escolhas. 

Mas era como professor que Ciro primeiro se definia. Aqueles que tiveram a oportunidade única de assistir a seus disputadíssimos cursos, que iam das formas artísticas e literárias do antigo Oriente Próximo ao imaginário contemporâneo da ficção científica, outra de suas eternas paixões, nunca vão esquecer de sua incrível presença em sala de aula. Seu carisma, seu humor ácido, seu cuidado em responder cada pergunta, por mais simples ou estúpida que fosse, sua paciência em receber cada aluno em sua mesa, inclusive os que só queriam aparecer ou ter o prazer de ter o mito para si durante alguns minutos, eram uma pequena amostra da humildade e simpatia com que tratava a todos que estavam não no topo mas na base da pirâmide. 

Quem mais a.C ou d.C (antes ou depois de Ciro) fez ou fará aquelas magníficas notas de aula, que chegavam a dezenas de páginas, e a vários exemplares por curso, que o grande mestre copiava às custas de seu bolso, para garantir que os mais desprovidos não saíssem prejudicados? Como esquecer seu esforço em voltar para a sala de aula, a sua segunda casa, assim que expiravam suas licenças médicas? E isto mesmo depois das muitas cirurgias que lhe foram impostas por um câncer buco maxilar, não ainda o que lhe ceifaria a vida, mas o que lhe tirou a visão de um dos olhos? Atravessou um verdadeiro calvário cirúrgico sem jamais reclamar da vida ou da senda que os deuses lhe abriram. Até a última de suas risadas tão peculiares, que soavam como pontuações de frase; até a última impostação de sua voz grave e marcante. 

Apesar de gigante na palavra, na escrita e nas ideias, era na relação afetiva com os orientandos e estudantes mais chegados que se revelava a extensão de sua influência e a singularidade de seu caráter. Mesmo não podendo privar de sua intimidade como gostaria, gozei dos privilégios da proximidade. Sinto como se nada houvesse na minha memória agora além das muitas viradas de copo no Outback de Niterói, da acolhida em seu refúgio silencioso de Friburgo, das visitas pós-cirúrgicas à sua casa, das tantas viagens a congressos, em Curitiba, Porto Alegre e Pelotas, sempre na sua boa companhia. Como outros alunos, não escapei de sua influência englobante. Já no terceiro período da faculdade entrei para o CEIA, laboratório de estudos da antiguidade por ele dirigido, o que foi o início de uma convivência cheia de provas de sua generosidade e sensibilidade e que me levaria ao mestrado em História Antiga, muito por força de sua contagiante figura. Era Ciro quem trazia os quitutes e bebidas para as festas de confraternização, sempre muito alegres. Era ele quem pagava do próprio bolso as passagens aéreas dos jovens ingressantes, um estímulo para que os navegantes de primeira viagem debutassem na exposição de comunicações fora do estado. 

Na iniciação científica, fazia o inverso da lógica industrial vigente. Ao invés de “ganhar tempo” explorando o trabalho braçal de estudantes na peneira de arquivos que interessassem a seu projeto de pesquisa, perguntava ao neófito o que lhe aprazaria estudar e redigia de próprio punho propostas ao CNPq e à Faperj, definindo um plano de trabalho de comum acordo. Acreditava que este era o sentido da expressão “iniciação científica” e que qualquer outra coisa seria tirar proveito da imaturidade intelectual de um aluno de terceiro ou quarto período, momento em que se deve abrir, e não fechar caminhos. 

Por diversas vezes, testemunhei sua amabilidade para com os estudantes. Sua sensibilidade lhe permitia observar de longe o comportamento dos que conhecia melhor. Quando saí de uma reunião, distraído e apático por andar às voltas com uma desilusão amorosa, foi Ciro que indagou a meu respeito aos colegas, que me procurou pessoalmente para oferecer ajuda. Ele, que me chamava carinhosamente ora de “Neve”, ora de “Snow”; que tinha olhar largo para os antecedentes ou dramas familiares dos alunos, que fazia um afago por mais sutil que fosse naqueles que se julgavam rejeitados, que se sabiam adotados ou que se sentiam deslocados, sem nunca ser invasivo, sem nunca sair da cordialidade. 

Tenho para mim que seu sarcasmo ferino, que muitos amavam e outros tantos odiavam, era uma maneira muito pessoal dele lidar com o mundo. O que importa é que com este sarcasmo ele podia tanto agregar os amigos em volta de uma mesa ou os alunos em uma sala de aula, quanto atacar e dispersar os bajuladores, os cobiçadores de poder e os que fazem cegamente o jogo da política acadêmica. Era sobretudo aos que procuraram privatizar o público, na UFF e fora dela, na História e fora dela, que voltava sua língua cortante e seu espírito combativo. Era para frear os aproveitadores camuflados na sofisticação do discurso acadêmico que Ciro se valia de seu imenso prestígio. Agora que sua voz já não se escuta, outras vozes terão que se levantar. 

De outra forma, não se gabava de seu prestígio ou de suas façanhas. Sua humildade o impedia de mencionar as discussões que teve com intelectuais como Sartre e Hobsbawm, sua relação com Braudel, Pierre Chaunu e Frédéric Mauro, entre muitos outros, a não ser quando alvejado pela curiosidade mórbida dos novatos. Pela mesma razão, foram pouquíssimos os que souberam que, antes de voltar do exílio em 1978, o parlamento alemão havia aprovado seu nome para a Universidade de Berlim, e que declinou do cargo por já haver confirmado seu ingresso na UFF, alguns meses antes. Ou, ainda, que há cerca de 10 anos, a Universidade de Yale lhe convidou para assumir a área de medieval do seu departamento de história. Desta vez a recusa se deveu à sua coerência inabalável: preferiu seguir com sua contribuição em história antiga, mesmo em um país que não lhe dá qualquer valor.

Apesar de sua fluência em pelo menos seis línguas vivas e três mortas, jamais abusou de expressões de outros idiomas, preferindo sempre o “como se diz mesmo?” quando lhe escapava o correlato em português. Uma aula para os tantos acadêmicos, que adoram ostentar seu inglês, francês, ou espanhol, por muito pouca....coisa. 

O grande mestre se foi. Seu velório foi como o desfecho de uma sinfonia, com aplausos de pé que mostraram o reconhecimento e a gratidão emocionada de quem assistiu ao grande espetáculo que foi a vida do Ciro, e que a catarse mudará para sempre. Continuarei falando dele muitas vezes. Arranjarei pretextos para me deliciar com as muitas versões do Ciro que povoam a memória de amigos que conheceram seu lado mais brincalhão, e até mesmo infantil. Dos muitos aprendizados e lembranças que levarei comigo neste curto lapso chamado existência, talvez o maior seja sua concepção de magistério como semeadura da palavra, em que um simples gesto pode ser a experiência mais transformadora de uma biografia. Ainda que este seja um estado muito difícil de atingir, vale a pena lutar por ele. Bastará lembrar do Ciro!

Alexandre de Paiva Rio Camargo